domingo, 27 de novembro de 2016

Psycho Killer

Não esperava tão cedo reencontro, salão esse bem desproporcional ao seu estilo de vida, eu disse, a moça ruiva, da cara imensamente pintada de sardas de sol, riu. Na semana passada eu teria tomado aquele café supimpa na sua cozinha por pintar, mas hoje o que faço é escrever, escrever, escrever, nada que eu já não esteja acostumada a fazer, nada que não me dê um minimo de prazer, pois eu realmente gosto das orações, das sentenças e das virgulas, mas isso nem ao caso vem. Fato é que semana passada eu tinha tempo, mas não tanto assim, tinha mais era preguiça de estudar genética de populações, translocações e relações hídricas, por tudo isso, quando se escreve muito, se consome muito e a academia te desgasta muito, você lê muito e assiste muito seriado, acaba vivendo um pouco alheia ao que é real, bem comigo acontece com muita frequência, disse a moça dos cachinhos, que tem como maior hobby o consumo de opiáceos, olhei para ela e logo disse, não esperava tão cedo reencontro, dado que a última vez que nos vimos, joguei o celular na parede e ameacei te bater com um livro do Caio F. Abreu, sabe eu tinha acabado de receber aquele livro e apesar de ter custado 19 reais seria triste se caísse dentro da tuba suja e entupida da pia decadente, na verdade nem foi isso que eu disse, acho que terminei a frase ( essas que eu tanto gosto) em reencontro, ponto final. Com todos os cachos presos num coque desgrenhado e horrendo acima da cabeça, ela acendeu um cigarro, foi até a janela, mas devo dizer que não há nesse trecho nada romântico, nada poético, nada de nada, porque a casa estava realmente imunda, por onde se arrasta o pé, sai pó, por onde se anda, levanta bolas de pelo e se ousar passar a mão naquele peitoral, capaz sair um gremlin no dedo e capaz que pule na cara e grude para todo o sempre. Eu nem queria estar sentada ali, uma camiseta de moscas, branca e nova e uma calça jeans azul escuro, que estava na promoção na Riachuelo, eram minhas mais novas aquisições de vestimenta naquele momento. A moça ruiva, passou uma das mãos no chão escuro de taco, deixando-me ver na palma da mão branca três definidas barras pretas, de fuligem, cinzas e pó, fiz cara de nojo extremo e me levantei do chão. A janelesca e fumante mulher, vestia uma camiseta azul desbotada e um shorts jeans velho e rasgado, levantou o olhar da janela se voltando para meu movimento brusco de retirada do chão sujo, você ia mesmo jogar o livro em mim? indagou enquanto sorria falsamente, pensei que o clima ali estava bem estranho, estranho e sujo, não que minha casa seja a primazia da limpeza, tenho um cão, dois gatos e eu, um quintal com terra, tomates e sapos, eu nem sei esfregar box de banheiro, o meu ta sempre engordurado, mesmo limpando uma vez na semana ou no mês, tentei disfarçar e o rádio, pasmem, a única coisa eletrônica ainda existente naquela casa começou a tocar Te Devoro do Djavan, cantarolei o primeiro trecho, pigarrei e pedi um pouco do chá gelado que jazia, já provavelmente morno, sobre a mesa de mogno empilhada em um canto da sala, olhei novamente a imagem que estava disposta de maneira bem informal sobre a mesa, enquanto agarrava a garrafa de chá e enchia meu copo, ali estava um amplo salão, iluminado por uma janela panorâmica que pegava a parede toda e dava de frente para o banhado, disse em voz alta, posso ir embora a pé desse apartamento, se eu estiver bem disposta, sim esta a menos de 10 minutos da sua casa, disse a ruivinha enquanto folheava um livro de uma das caixas empilhadas ao lado do chão sujo onde estava sentada, a do coque até agora não havia dito nada, mas nem mesmo sei precisar o tempo que se transcorreu desde a pergunta que ela me fez até o momento em que falei algo útil sobre o novo apartamento, o livro, você ameaçou atirar um livro em mim, até quando vai ignorar o fato de que não apenas eu preciso de ajuda, você também precisa, quanto tempo faz que você não vê um terapeuta? Quando foi a última vez que você se descontrolou assim com alguém? 
Há uma coleção de descontroles aqui na minha memória, puxando um dos mais velhos, eu jogava a escova no chão com raiva, por não conseguir desembaraçar o cabelo ou era minha mãe quem jogava por não conseguir desembaraçar meu cabelo, não poderia afirmar, mas outra vez bati no cachorro que nada tinha culpa da minha irritabilidade e outra vez quebrei meu celular na parede, ameacei jogar as coisas de alguém que eu amava fora, bati em alguém que amava, arranhei sua pele branca e com muito pesar vi muita tristeza naqueles fundos e semicerrados olhos verdes, mas também sangrei demais naquele tempo, doía demais, tantos hematomas, tantas hemorragias, mas tanto compulsivo, abusivo e doentio amor, de tantas as partes. Confesso algo de mim tende a querer estar perto do que me faz mal, eu estava naquele apartamento sujo, olhando a pia decadente, repleta de louças há seculos, poeira, fuligem, pó, meu prazer pela dor, seu gosto pelo poder.  Há uma coleção de recomendações terapêuticas quanto a isso, dizem que a bipolaridade pode se manifestar na infância, mas é comum se evidenciar no final da adolescência e inicio da vida adulta, há anos eu estou bem e equilibrada, a anos eu raramente levanto a voz, há anos eu resolvo as coisas como um ser civilizado, eu estou bem, sei disso, olha para meu rosto!? Bochechas coradas, cabelo escovado, lavado, cheiroso, longo e brilhante, roupa ajeitada, comida feita com carinho e amor, sexualidade normal, fluindo, eu estou bem, pensei em dizer, eu gosto de você, foi o que saiu da minha boca, mas não a aponto de nos respeitar como seres individuais. Ser um só corpo, Vinicius me disse uma vez, aprendi a amar errado, desde muito cedo. Ela saiu da janela e veio ao meu encontro, segurou minha cabeça, suas mãos cheiravam a cigarro, fortemente aquele cheiro começou a impregnar no meu cabelo, te beijei, ou retribui um beijo, talvez eu apenas quisesse acabar com aquilo tudo rapidamente, mas sentir a quentura de sua boca se espreitando contra a minha e enchendo de carmim os vãos obscuros dos dentes e as possíveis cáries e todas as bactérias, me fizeram ver que ali ainda havia algo, pequeno e moribundo algo, não há nada de romântico nisso, nada de poético, nada de nada. "Qu'est-ce que c'est?", a frase que produz a melhor onomatopeia para o ruído de uma serpente quando repetida continuamente. 

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